Introdução
Vivemos num tempo que idolatra a razão. Da inteligência artificial à política baseada em dados, da ciência ao discurso público, espera-se que a razão funcione como guia infalível para nossas decisões. Mas e se essa confiança for exagerada? E se a razão, em vez de nos conduzir com segurança, for um instrumento frágil, enviesado e até mesmo enganador? É exatamente isso que o filósofo francês Michel de Montaigne, do século XVI, propõe em sua obra Apologia de Raymond Sebond. Escrito há mais de quatrocentos anos, esse texto ainda tem muito a nos ensinar sobre os perigos de colocarmos a razão num pedestal.
- A razão é menos confiável do que pensamos Montaigne não é contra o uso da razão, mas contra sua idolatria. Para ele, a razão humana está longe de ser perfeita: ela se contradiz, se engana, muda conforme as conveniências e é afetada por paixões. Em um trecho marcante, ele ironiza o fato de que tantos filósofos usam a razão, mas não conseguem concordar entre si. Se a razão fosse de fato confiável, por que ela leva a tantas opiniões divergentes?
- A comparação com os animais Para desconstruir a superioridade racional do ser humano, Montaigne recorre a comparações com os animais. Ele observa que os bichos também demonstram formas de inteligência, comunicação, e até emoções. Isso abala a crença de que só os humanos têm acesso à razão — e que, por isso, teriam o direito de dominar tudo ao seu redor. Montaigne nos convida a olhar com mais humildade para nossa posição no mundo.
- Duvidar é saudável Ao contrário do que muitos pensam, duvidar não é sinal de fraqueza ou incerteza. Para Montaigne, é justamente por duvidar que conseguimos manter uma mente aberta, livre de dogmas. A dúvida é um modo de respeitar a complexidade do mundo. Ela não paralisa — ela protege. Em vez de construir sistemas rígidos, Montaigne prefere o ensaio, o pensamento flexível, que reconhece seus limites.
- E Descartes? E Pascal? Séculos depois de Montaigne, Descartes usou a dúvida como ponto de partida para fundar uma razão absoluta: “Penso, logo existo”. Pascal, por outro lado, apontou que a razão não alcança tudo — que o coração tem razões que a própria razão desconhece. Montaigne, nesse debate, ocupa um lugar único: ele desconfia da razão sem cair no irracionalismo e valoriza a dúvida sem transformá-la em sistema.
- O que isso tem a ver com hoje? Num mundo dominado por algoritmos, “racionalidade econômica” e discursos de especialistas, a lição de Montaigne é preciosa. A razão técnica não é neutra. Ela pode mascarar interesses, excluir afetos, silenciar vozes diferentes. Quando dizemos que “os dados falam por si”, esquecemos que sempre há alguém escolhendo quais dados contar e como interpretá-los. Montaigne nos convida a duvidar também das razões modernas: das que se escondem em modelos matemáticos, decisões tecnocráticas ou sistemas inteligentes.
Conclusão
Pensar com humildade Montaigne não quer abolir a razão — ele quer humanizá-la. Ao reconhecer que pensamos com o corpo, com as emoções e com o contexto, ele nos propõe um uso mais modesto e mais ético da razão. Não uma deusa intocável, mas uma ferramenta limitada, útil quando usada com cautela. Em tempos de certezas agressivas, teorias fechadas e fé na máquina, talvez seja a hora de reaprender a duvidar.
Sugestão de leitura:
- Michel de Montaigne, Apologia de Raymond Sebond (Ensaios, Livro II, cap. 12)
- Sylvia Giocanti, Ceticismo e Inquietude
- Frédéric Brahami, Montaigne: a experiência humana
- Blaise Pascal, Pensamentos
- Hugo Friedrich, Montaigne
