Montaigne sugere que os hábitos cotidianos têm o poder de nos transformar profundamente, a ponto de alterar nossa “natureza”, ou seja, nossa maneira de ser, sentir e agir — sem que percebamos. Eles nos condicionam, como se encantassem nosso espírito e nosso corpo, transformando-nos lenta e imperceptivelmente. Ele usa aqui uma analogia mitológica para ilustrar esse poder de transformação que não é racional, nem voluntário — é quase mágico e perigoso.
🧙♀️ A história da bebida de Circe
Na mitologia grega, especialmente na Odisseia de Homero, Circe é uma feiticeira que vive na ilha de Aeaea. Quando Ulisses (Odisseu) e seus companheiros aportam ali durante sua longa viagem de retorno de Troia, ela os recebe com hospitalidade, mas oferece uma bebida encantada. Ao beberem, os marinheiros são transformados em porcos, pois a poção contém um feitiço que muda sua forma exterior, animalizando-os. Odisseu, com a ajuda do deus Hermes, resiste ao feitiço e consegue forçar Circe a desfazê-lo, restituindo seus companheiros à forma humana.
🔍 O que Montaigne quer dizer com essa comparação?
Montaigne recorre a essa imagem da poção transformadora para falar da força silenciosa e modeladora dos hábitos. Assim como os companheiros de Ulisses foram transformados sem perceber o que estavam bebendo, também nós nos deixamos levar pelos costumes e nos tornamos diferentes sem perceber — mais brutos, mais automáticos, menos críticos, talvez até menos humanos. Essa crítica aparece recorrentemente nos Ensaios, sobretudo nos capítulos sobre a costumeira aceitação de crenças e valores sociais sem exame crítico. Para Montaigne, o costume é o maior dos mestres, mas também o mais enganoso, pois naturaliza o que é artificial e faz parecer inevitável o que poderia ser diferente.
🧠 Conclusão
Para Montaigne, refletir sobre o poder do hábito é um gesto filosófico essencial. Quando ele compara o hábito à poção de Circe, está nos convidando a perceber o quanto somos levados, sem perceber, por forças sociais, culturais e emocionais que nos moldam de forma sutil e contínua — às vezes nos desumanizando ou nos bestializando, como os companheiros de Ulisses. Assim, ele propõe o exercício cético de questionar, hesitar e suspender o juízo, como forma de recuperar a liberdade diante do automatismo dos costumes.
