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O século XXI amanheceu cansado das verdades. Exausto de ter que escolher um lado. Saturado de opiniões definitivas, doutrinas salvíficas, visões totalizantes. No palco da história, as ideias passaram a gritar umas contra as outras — e a escuta foi banida. Restou o ruído. E o medo. E a angústia de não saber a quem dar razão. Foi nesse cenário, paradoxalmente barulhento e vazio, que a figura esquecida do cético começou a reaparecer — não como herói, mas como companhia discreta e luminosa.

Não se trata de uma volta aos manuais de filosofia antiga nem a um ceticismo acadêmico, frio ou abstrato. Trata-se de algo mais profundo e ao mesmo tempo mais simples: redescobrir a beleza de não ter razão. De não precisar ter razão. De poder habitar o mundo sem um projeto de correção ou domínio. De viver, enfim, à altura da incerteza.

A filosofia cética moderna, especialmente em sua versão montaigniana, nos oferece uma espécie de reencantamento suave pela dúvida. O cético não despreza a verdade, mas desconfia dos que a declaram conquistada. Ele não vive mergulhado na desconfiança amarga, mas cultiva uma desconfiança terna, sensata, cordial. Ele sabe que a maior parte do que nos agita não vem da dúvida, mas do desejo violento de não tê-la.

Como escreveu Montaigne, com desarmante humildade: “Je veux qu’on agisse, et qu’on allonge la vie des offices du plaisir, autant qu’il est en nous ; c’est ce qu’ils appellent vivre selon nature. Ce n’est pas une petite chose d’arrêter les mouvements de l’âme, et de la mettre en repos”¹. O cético moderno, herdeiro desse espírito, não busca eliminar os movimentos da alma — mas aquietá-los quando ameaçam a convivência, a lucidez e o amor ao mundo.

Viver com incerteza não é viver na omissão, mas na vigilância. Não é abdicar do mundo, mas redobrar a atenção a ele. Não é negar a ação, mas recusar a ação cega. O cético não se abstém de agir, mas age com leveza, consciente de que cada gesto carrega consigo um fundo de não saber. Ele suspende o juízo não porque não se importa, mas porque se importa demais para julgar mal.

Esse modo de ser é tudo menos fácil. Ele exige coragem: a coragem de viver sem amparo absoluto. A coragem de caminhar sem chão fixo. De enfrentar a pluralidade sem a proteção de uma Verdade única. Como escreveu Sexto Empírico, “le sceptique est celui qui cherche”². Mas sua busca não é agitada, nem ansiosa. É uma busca que se contenta em não concluir. Uma busca que não exige recompensa. Uma busca, como dizia Pascal, “infiniment prolongée”, pois “l’homme passe infiniment l’homme”³.

É por isso que o ceticismo moderno, longe de ser um refúgio para fracos, é uma escola de força delicada. Ele nos convida a descer do pedestal das ideias prontas, a sair das trincheiras da razão combativa e a descobrir que há mais sabedoria na escuta do que na certeza. O cético não se impõe: ele se dispõe. Ele não ensina como se vive — mas vive de um jeito que ensina.

E há algo de profundamente terapêutico nessa filosofia. Pois, como escreveu Sylvia Giocanti, “le scepticisme moderne ne produit ni l’indifférence, ni l’inaction, ni l’apathie. Il stimule une forme d’attention inquiète au monde et à soi”⁴. O cético não dorme no mundo, mas também não o transforma num campo de batalha. Ele desperta para o presente com leveza. Vive como quem se inclina, e não como quem avança.

Dizer que o cético é o mais lúcido é talvez exagerar. Mas é justo dizer que ele é o mais vigilante. E que sua vigilância não é violenta, mas terna. Que sua lucidez não é seca, mas permeada de humor. Que sua dúvida não paralisa, mas suaviza. Que seu silêncio não é vazio, mas acolhedor.

Por isso o ceticismo moderno pode ser, sim, a filosofia mais bela do nosso tempo. Não porque ofereça soluções, mas porque alarga o espaço da escuta. Não porque indique um caminho único, mas porque permite que cada um encontre o seu — sem pretender convertê-lo. Não porque prometa salvação, mas porque se contenta em caminhar ao lado. E isso, em tempos de fanatismo e pressa, já é um milagre.

Notas

  1. MONTAIGNE, Michel de. Essais, Livre I, chapitre 39, “De la solitude”. Paris : Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 2009, p. 251.
  2. SEXTUS EMPIRICUS. Esquisses pyrrhoniennes, I, §1. Paris : Seuil, coll. Points, 1997, p. 17.
  3. PASCAL, Blaise. Pensées, fragment B434 (Laf. 418). Paris : Gallimard, La Pléiade, 1976, p. 578.
  4. GIOCANTI, Sylvia. Scepticisme et inquiétude. Paris : Vrin, 2022, p. 17.