A sabedoria negativa socrática como obstáculo à manipulação retórica
Na passagem em questão, Sócrates, dirigindo-se a Teeteto, afirma que a única arte de que é portador é a de tornar os outros mais conscientes da própria ignorância. Esse saber que confessa – o de “não pensar que se sabe aquilo que não se sabe” – tem uma eficácia prática e ética muito distinta daquela promovida pelos sofistas, que ofereciam discursos persuasivos sem compromisso com a verdade. Essa arte maieutica não gera conhecimento pronto, mas estimula o movimento interno de busca, o parto intelectual, a gestação de ideias mais verdadeiras.
Contudo, Sócrates adverte que mesmo aquele que permanecer “estéril”, ou seja, que não conseguir conceber bons pensamentos a partir da investigação presente, terá ao menos adquirido uma virtude crucial: a humildade epistêmica. Essa disposição ética e intelectual não é um mero efeito colateral da investigação, mas o próprio centro da sabedoria socrática – reconhecer os limites do saber e, por isso mesmo, ser mais afável, menos dogmático, mais cuidadoso com os outros.
Essa postura entra em conflito direto com a lógica sofística, centrada na persuasão e no uso instrumental da linguagem para obter vantagens políticas ou pessoais. O que Sócrates antecipa aqui, e Platão constrói ao longo de seus diálogos, é a percepção de que o discurso retórico, quando divorciado do cuidado com a alma (epimeleia heautou), tende a servir aos interesses particulares de quem o profere – seja por vaidade, por desejo de poder, ou por manipulação do público. O sofista, diferentemente do filósofo, não duvida de suas opiniões; ao contrário, ele as molda ao sabor das conveniências.
Nesse sentido, a sabedoria negativa socrática – saber que não se sabe – torna-se um verdadeiro escudo contra a imposição dos discursos falaciosos. O interlocutor que se abre ao exame filosófico não é mais um solo fértil para a manipulação, pois se tornou cauteloso, investigativo, e capaz de perceber a fragilidade dos argumentos fáceis. O sujeito “vacinado” pela maiêutica contra a presunção de saber não aceita mais de forma passiva os consensos retóricos nem as certezas dogmáticas que sustentam os discursos de dominação.
Da humildade epistêmica ao interesse coletivo
Platão, pela boca de Sócrates, sugere que essa transformação interior do indivíduo tem consequências éticas e políticas. O sujeito que não mais acredita saber aquilo que ignora torna-se mais aberto ao diálogo, mais tolerante com os outros, menos propenso à disputa e ao conflito. Essa mudança subjetiva – do orgulho epistêmico à disposição dialógica – opera também uma reorientação da vida pública: ela substitui a busca por vitória retórica pela busca de entendimento mútuo.
Ora, essa postura entra em tensão direta com qualquer prática social ou política fundada na supremacia dos interesses privados sobre o bem comum. O sofista representa aquele que instrumentaliza o saber em benefício de si mesmo ou de seus aliados; já o filósofo encarna o sujeito que se dispõe ao exame coletivo, que se expõe ao contraditório e que reconhece a legitimidade do outro como interlocutor. A sabedoria socrática, por isso, é também uma ética do comum.
Platão antevê, portanto, que regimes fundados na retórica, na vaidade e na manipulação da opinião pública (a doxa) estão fadados ao conflito, pois fazem da linguagem um campo de batalha em vez de um meio de cuidado. E é nesse sentido que a filosofia, ainda que “estéril” em resultados imediatos, torna-se fértil em humanidade: ela modera os ânimos, dissolve a pretensão de superioridade, e gera indivíduos menos duros, mais afáveis, mais justos.
Conclusão
Platão, ao fazer de Sócrates o símbolo de uma ignorância ativa e reflexiva, antecipa um problema central da vida democrática: como lidar com a manipulação dos discursos quando eles são usados para fins egoístas e não para o bem comum? A resposta socrática é radicalmente simples: cultivar a dúvida, o exame, o recuo, a escuta. E essa prática não é apolítica – ao contrário, ela é o fundamento mais sólido de uma política não violenta, não fanática, não dogmática.
Assim, estar “munido da sabedoria de não pensar que sabe aquilo que não sabe” não é um gesto de passividade, mas um gesto de resistência. É um ato ético que desmonta os alicerces do discurso autoritário, que confunde aparência com verdade, técnica com sabedoria, retórica com justiça. A filosofia socrática é, nesse sentido, um antídoto contra a usurpação do espaço público por aqueles que transformam a linguagem em arma.
